"Vamos desenhar um mundo sem divisões...
onde o pequeno é também importante.
Vamos desenhar o
amor
com grandes letras"

Redução da Maior idade penal

REFLEXÕES IMPORTANTES

No Brasil, o debate em torno da redução da maioridade penal sempre acontece em momentos de comoção nacional – geralmente na esteira de algum crime brutal envolvendo a participação de adolescentes, como foi o caso da trágica morte do menino João Hélio, de apenas seis anos. Nesse cenário permeado pela emoção e pela indignação da sociedade, cada vez mais cansada de pagar impostos e não ter de volta do Estado a garantia dos serviços públicos básicos, é tarefa complexa a tentativa de refletir com maior profundidade sobre a questão da violência e sua relação com os jovens. Mas é de fundamental importância lançar algumas luzes nessa discussão para que os mitos e as verdades sejam de conhecimento público e, a partir disso, a população e as autoridades possam, em parceria, agir no enfrentamento dessa grave mazela social, com maturidade e responsabilidade. Como coordenadora da Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente no Senado, Patrícia Saboya tem participado ativamente das discussões em torno do problema da violência, buscando, ao lado dos representantes de movimentos sociais e do Poder Público, caminhos concretos para que o Brasil possa superar esse drama. A seguir, apresentamos uma compilação de dados, informações e argumentações dos especialistas da área da infância acerca desse tema.

1. Os adolescentes e a criminalidade no Brasil
Pesquisas realizadas em vários países do mundo mostram que a pobreza e a violência atingem especialmente as pessoas mais jovens. O Brasil tem 25 milhões de adolescentes, cerca de 15% da população brasileira, segundo o último censo do IBGE. É um País marcado pelas desigualdades sociais, onde 1% da população rica concentra 13,5% da renda nacional, contra os 50% dos mais pobres que detêm 14,4%, de acordo com dados do IBGE de 2004. Tal desigualdade traz conseqüências diretas para as crianças e os adolescentes. Muito embora 92% das pessoas entre 12 e 17 estejam matriculadas na escola, 5,4% ainda são analfabetas. Na faixa etária de 15 a 17 anos, 80% dos adolescentes estão nas escolas, mas somente 40% estão no nível adequado à sua idade e apenas 11% dos adolescentes entre 14 e 15 anos concluíram o ensino fundamental. Na faixa de 15 a 19 anos, diferentemente do que ocorre entre 7 e 14 anos, a escolarização diminui à medida que aumenta a idade. Segundo pesquisas recentes da Unesco, a escolarização bruta de jovens de 15 a 17 anos é de 81,1%, caindo para 51,4% quando a faixa etária é de 18 a 19 anos.

Lamentavelmente, e ao contrário do que se argumenta, nossos adolescentes são muito mais vítimas do que algozes nessa triste guerra. Segundo dados do Unicef, 16 crianças e adolescentes brasileiros morrem, por dia, vítimas da violência. E as pessoas com idades entre 15 e 18 anos representam 86,35% dessas vítimas. Enquanto a taxa de mortalidade por homicídios de adolescentes está em torno de 35 por 100 mil habitantes, a da população em geral encontra-se em 27 por 100 mil segundo dados do Datasus. Além disso, pesquisa divulgada pela Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, Ciência e Cultura (OEI) revela aumento das mortes violentas de jovens no Brasil. Não existe Nação, entre as 65 comparadas, onde os jovens morram mais vitimados por armas de fogo do que no Brasil. O país é também o terceiro, entre 84, onde mais morrem jovens por homicídios. Segundo estudos da Unesco, a morte por causas externas na população jovem brasileira é de 72% e, desse universo, 39,9% referem-se a homicídios praticados contra os jovens. Já em relação ao restante da população, a taxa de óbitos é de 9,8% e, desse total, os homicídios representam apenas 3,3%.

Por outro lado, de acordo com o Ilanud (Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente), o percentual de jovens com idade inferior a 18 anos que comete atos infracionais é de menos de 1% da população total nessa faixa etária.

Levantamento da Secretaria de Direitos Humanos mostrou que há cerca de 40 mil jovens cumprindo alguma medida socioeducativa no País, o que corresponde a 0,2% da população brasileira entre 12 e 18 anos. Desse total, em torno de 15 mil adolescentes estão em medidas de internação e internação provisória. Em uma década – de 1996 a 2006 – aumentou de 4.245 para 15.426 o número de jovens em unidades de internação.

Uma pesquisa realizada em 2002 pelo Ministério da Justiça e pelo IPEA traçou o perfil dos jovens que estavam em unidades de internação e confirmou o grau de vulnerabilidade deles. Entre esses adolescentes, 90% eram do sexo masculino, 76% tinham entre 16 e 18 anos, 63% não eram brancos (e, destes, 97% eram afrodescendentes), 51% não freqüentavam a escola, 90% não concluíram o ensino fundamental, 49% não trabalhavam, 81% viviam com a família quando praticaram o ato infracional, 12,7% viviam com famílias que não possuíam renda mensal, 66% eram de famílias com renda mensal de até dois salários mínimos e 85,6% eram usuários de drogas.

É fundamental lembrar que, segundo dados divulgados recentemente pela Subsecretaria dos Direitos da Criança e do Adolescente e publicados no Jornal O Globo, na edição de 23 de fevereiro de 2007, o Estado brasileiro gasta 4.400 reais, em MÉDIA, POR MÊS, para manter um adolescente internado nessas instituições. Para termos uma idéia de comparação, o custo de um aluno no ensino fundamental é de cerca de 1.900 reais por ANO (158,33 por mês). Ou seja: o custo de um adolescente internado equivale ao gasto com 28 estudantes do ensino fundamental. É evidente que há algo de errado nisso tudo. Mais uma vez, fica reforçada a tese de que o melhor caminho para prevenir a violência é o investimento maciço em educação.

Outro levantamento, da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, mostrou que a participação de menores de 18 anos em crimes graves, registrados no Estado em 2003, não alcançou 1% dos casos. Dos 9.150 casos de homicídios dolosos, 89 tiveram o envolvimento de adolescentes (0,97%). Em 2002, o percentual ficou em 0,9%.

2. O que diz o ECA e o que acontece na prática
Outro lugar-comum no debate em torno da redução da maioridade penal diz respeito às normas estabelecidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que, segundo os críticos, não punem com rigor os menores de idade que cometem crimes. Isso é uma falsa idéia que se espalhou pela sociedade. O ECA, em vigor desde 1990, é um importante instrumento de coerção e prevê o tratamento dos jovens infratores como sujeitos de direitos e de responsabilidades. No caso de infração, estabelece medidas sócio-educativas, cuja finalidade é punir, sim, mas ao mesmo tempo prepará-los para o convívio social. As medidas punitivas são as seguintes: 1) advertência; 2) obrigação de reparar o dano; 3) prestação de serviços à comunidade; 4) liberdade assistida; 5) inserção em regime de semi-liberdade e 6) internação em estabelecimento educacional.

Na prática, entretanto, o que acontece no Brasil é que as cinco primeiras medidas quase não são aplicadas e a maioria dos jovens em conflito com a lei acaba indo direto para uma unidade de internação independentemente da infração cometida. Hoje o que vemos, portanto, é a priorização das medidas de internação em instituições que mais parecem depósitos de jovens. Isso ocorre mesmo tendo uma resolução do Conanda determinado que essas unidades deveriam abrigar, no máximo, 40 adolescentes. Mas, em vez de oferecerem oportunidades para eles se desenvolverem e reconstruírem suas vidas, essas instituições acabam funcionando como verdadeiras escolas para a criminalidade e, descumprindo o que diz o ECA, os adolescentes não são separados por faixa etária e por tipo de delito cometido. Resultado: os jovens que furtaram um tênis ou uma cerveja convivem com os que mataram e cometeram crimes cruéis.

Levantamento do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) revelou que 71% dessas entidades não estavam adequadas às necessidades da proposta pedagógica prevista pelo ECA. Inadequações que iam da inexistência de espaços para atividades esportivas e de convivência até as péssimas condições de manutenção e limpeza. A pesquisa salientou que mesmo as entidades consideradas adequadas o são mais no sentido de manutenção de segurança do que no de cumprir realmente com a tarefa de desenvolver propostas sócio-educativas. Ou seja: muitas unidades mantêm uma estrutura tipicamente de prisão, o que nada ajuda na recuperação dos jovens.

O problema, portanto, não está no Estatuto, mas na falta de aplicação de seus preceitos por muitos governantes. Estudos têm demonstrado que quando essas medidas são corretamente implementadas, é menor do que 5% o grau de reincidência dos jovens no mundo do crime. No sistema prisional brasileiro, o grau de reincidência passa de 70%.

Segundo Karyna Sposato, diretora-executiva do Ilanud, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo no dia 17 de fevereiro de 2007, muitas vezes, na prática, os adolescentes infratores são até mais penalizados que os adultos. De acordo com ela, o adolescente apreendido em flagrante no Brasil, seja qual for o crime, é conduzido a uma delegacia comum, ao contrário do que diz a lei. A regra de liberação do jovem, quando comparece a família, o que equivale ao relaxamento de prisão para o adulto, “é ficção científica” no Brasil, revela a especialista. Além disso, os operadores do sistema costumam lançar mão da internação provisória, sem que se observem os requisitos legais, pois “vale tudo quando a lógica é dar uma resposta rápida à sociedade e um susto no delinqüente”, diz Karyna. De acordo com ela, “enquanto um adulto pode responder em liberdade, o adolescente permanece preso. Enquanto um adulto pode ter hábeas corpus julgado a tempo, o adolescente cumpre a medida integralmente sem nenhuma manifestação da instância superior. Enquanto o adulto pode apelar em liberdade da sentença condenatória, o adolescente já está preso e, de antemão, é considerado culpado”. Ou seja, continua a diretora do Ilanud, na “Justiça da infância e da adolescência, não se reconhece o princípio da presunção da inocência. Ao adulto, apesar das conhecidas mazelas do sistema, são reconhecidas garantias processuais. Por que ao adolescente, nas mesmas condições, elas são sistematicamente negadas? E por que, apesar de tudo isso, ainda acreditamos ser um tratamento mais rigoroso que falta ao adolescente infrator?”, indaga Karyna.

É importante lembrar que o sistema previsto pelo ECA guarda similaridade com as penas estabelecidas na legislação criminal, segundo análise produzida pela Consultoria Legislativa do Senado Federal. Assim, a advertência está para o “sursis”; a liberdade assistida está para o regime inicial aberto; a semiliberdade para o regime semi-aberto e a internação para o regime fechado. O período máximo de internação, que é de três anos, também guarda semelhança com o tempo definido para os adultos e é proporcional à idade dos adolescentes. Dessa forma, três anos significam um quarto do tempo de vida de uma pessoa com 12 anos e um sexto do tempo de vida de quem tem 18 anos. Ou, em termos proporcionais, penas de sete e quinze anos de reclusão para um adulto de 30 anos. Fala-se muito em aumentar esse tempo de internação para cinco, seis ou até dez anos. É preciso, porém, analisar essa questão sob a ótica da duração da adolescência, que é de seis anos. O que significa que três anos representam metade desse período. O que queremos aumentando essa pena? Apenas condenar os nossos jovens a passar toda a sua adolescência em instituições que, nas condições atuais, não ressocializam ninguém, mas que, ao contrário, os conduzem cada vez mais para o mundo do crime? Que paradigma queremos construir para a nossa sociedade? O da educação e da civilidade? Ou o da barbárie e da vingança?

É também importante clarear alguns pontos referentes ao tempo de internação. Muita gente que defende o rebaixamento da idade penal tem dito que um jovem com 17 anos e 11 meses fica apenas um mês internado. Isso não tem amparo legal. O ECA é claro ao dizer que, se o delito merecer uma pena de três anos de internação, o juiz deverá decretá-la. O adolescente ficará em privação de liberdade durante esses três anos, ou seja, até completar 21. Cabe salientar ainda que, se no término do período de três anos, o juiz entender que aquele jovem não tem condições de retornar ao convívio social, ele continuará cumprindo medidas socioeducativas no regime de semiliberdade ou liberdade assistida, o que pode se estender por mais três anos. Na prática, portanto, esse tempo pode chegar a seis ou até a nove anos no total em alguns casos.

Mas, para que o juiz decida pela chamada progressão das medidas socioeducativas, é fundamental que os estados desenvolvam programas de semi-liberdade e os municípios executem as medidas de meio-aberto, como a liberdade assistida e a prestação de serviços à comunidade. No entanto, segundo o Levantamento Nacional de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente em Conflito com a Lei, realizado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos em 2006, há estados que não possuem uma única vaga de semi-liberdade. De acordo com o levantamento, 17 unidades da Federação não têm vagas nem lotação para semi-liberdade feminina. Já em relação ao regime de meio aberto, a pesquisa mostra que ações nessa linha são desenvolvidas nas capitais, mas não há informações sobre a realidade nos municípios do interior do País.

É diante desse panorama de total desrespeito às regras estabelecidas pelo Estatuto que devemos agir. Em agosto de 2006, a Secretaria Especial de Direitos Humanos e o Conanda (Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente) apresentaram o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), um documento que aprofunda os parâmetros traçados pelo ECA e estabelece diretrizes nacionais bastante claras para nortear as políticas públicas voltadas para os adolescentes infratores. Portanto, ele pode e deve ser um ponto de partida para a transformação da realidade. Uma de suas principais propostas é a ênfase às medidas em meio aberto (de prestação de serviço à comunidade e a liberdade assistida) em detrimento da internação, que deve ser um último recurso.

Mas, para que isso dê certo, é preciso envolver toda a comunidade – família, escola, rede de saúde e assistência social – e melhorar os mecanismos de acompanhamento desses jovens, oferecendo-lhes alternativas para a construção de um novo projeto de vida, baseado em valores como a cidadania, a ética, o respeito, a honestidade e a solidariedade. Além disso, é fundamental que o governo federal, em parceria com os estados e os municípios, destine recursos orçamentários suficientes para a implantação do Sinase, fazendo com que ele realmente saia do papel. Estimativas do Fórum DCA apontam que seria necessário haver, já em 2007, uma suplementação orçamentária da ordem de 400 milhões de reais, para que o Sinase seja colocado em prática. Outra medida importante é que o Executivo envie, rapidamente, para o Congresso Nacional o projeto de lei de execução das medidas socioeducativas, que regulamenta e detalha ainda mais o Sinase. E que o Congresso Nacional priorize a aprovação dessa proposta.

3. Mudar a lei mudará a realidade?
O Brasil é um País que adora soluções mágicas, mirabolantes e, se possível, fáceis e rápidas. No entanto, no que diz respeito ao problema da violência urbana, infelizmente é impossível apelar apenas com a alopatia. É fundamental também fazer uso da homeopatia. Ou seja: tratar as causas do fenômeno ao mesmo tempo em que é importante lançar mão de medidas imediatas, de cunho repressivo.

Outra mania brasileira é achar que tudo se resolve mudando as leis. Mais uma vez, no caso da segurança pública, isso não é verdade absoluta. Sabemos que menos de 3% dos crimes no Brasil são esclarecidos e seus autores processados. O que precisamos, então, urgentemente é adotar um conjunto de medidas em várias áreas para melhorar esse sistema, o que implica destinar mais recursos para a segurança pública e aplicá-los de forma racional e transparente; aprimorar o funcionamento das polícias, caminhando na direção da integração das forças, treinando e remunerando melhor os profissionais, combatendo a corrupção e aumentando o efetivo nas ruas; reformular o sistema prisional (que tem déficit de mais de 140 mil vagas) e de internação de adolescentes infratores (que tem déficit de cerca de três mil vagas), fazer reformas no Código Penal e no Código de Processo Penal, além de tornar a Justiça mais ágil.

É importante lembrar uma antiga e conhecida máxima do direito penal: “O que inibe o criminoso não é o tamanho da pena, mas sim a certeza da punição (Marquês de Beccaria)”. É preciso, portanto, agregar mais uma medida, que é o combate à impunidade. É essa certeza da punição que não existe no Brasil em nenhuma área. Estudos provam que o aumento da punição, mesmo no caso dos adultos, não diminui a violência. Os especialistas dão como exemplo claro disso a Lei de Crimes Hediondos, de 1990, que pretendia, com um tratamento mais rigoroso aos autores de tais infrações, reduzir sua incidência. Não foi o que aconteceu. Nunca tivemos tantos crimes hediondos no Brasil como atualmente. Nos Estados Unidos, onde existe a previsão de penas de morte e prisão perpétua, em sete anos de recrudescimento de sentenças aplicadas a jovens, o que se verificou foi a triplicação dos crimes praticados por adolescentes, sendo comuns as chacinas promovidas por crianças e jovens nas escolas. Por isso, o que os especialistas mais defendem é que haja uma ação rápida e eficaz das autoridades de segurança pública e da própria Justiça para que os crimes sejam elucidados logo e seus autores – adultos ou adolescentes – sejam punidos exemplarmente.

Além disso, com a redução da maioridade penal, o que se pretende é jogar mais jovens nas cadeias superlotadas do Brasil, onde a tônica são as rebeliões e o comando do crime organizado? O que vai acontecer, na prática, com o ingresso precoce dos adolescentes no sistema carcerário brasileiro é ensejar um tempo maior de especialização no crime. Segundo Ariel de Castro Alves, coordenador do Movimento Nacional de Direitos Humanos em artigo publicado recentemente na Agência Carta Maior, dados indicam que as pessoas entre 18 e 24 anos representam praticamente 70% da população prisional brasileira, o que mostra que o atual sistema não inibe a prática criminosa nos jovens adultos. Portanto, não serviria para intimidar os adolescentes, argumenta Castro Alves.

Para Mário Volpi, oficial de projetos do Unicef no Brasil, o envio de adolescentes para o sistema carcerário de adultos, além de não ser uma solução, vai resultar em problemas ainda maiores, tais como: a participação definitiva de adolescentes em grupos do crime organizado infiltrados nesse sistema; a falta de oportunidades para concluir estudos e obter uma profissão; a ausência de apoio terapêutico para reverter seu comportamento infrator; a aprendizagem da cultura do delito pela convivência intensa com a experiência do universo adulto.

A solução, segundo Volpi, está no desenvolvimento de projetos com pequenos grupos de adolescentes, baseados em atividades pedagógicas e terapêuticas que os ajudem a reorganizar sua vida sem a prática de delitos. Projetos bem estruturados, diz o especialista, conseguem recuperar adolescentes em menos de três anos. O Unicef, informa Volpi, tem exemplos dessas iniciativas de Norte a Sul do País. No entanto, o baixo investimento nessas ações e a descontinuidade das políticas impedem que elas se multipliquem pelo Brasil inteiro. De acordo com ele, as apostas em um sistema de medidas socioeducativas em diversos outros países foram muito mais eficazes do que o simples aumento de pena. “O Unicef constatou que não existe nenhuma relação entre o aumento da pena e a diminuição dos atos infracionais cometidos por adolescentes. O que muda essa realidade é um conjunto de oportunidades de educação, profissionalização e geração de renda”, afirma Mário Volpi. “Mudar a lei vai servir para fazer demagogia e esconder os graves problemas sociais que o Brasil tem”, sustenta Volpi.

4. As causas sociais: polêmica só para quem não quer ver o Brasil Real
Em um País considerado um dos campeões da desigualdade social, onde a pobreza atinge 45% das crianças e adolescentes, onde os direitos básicos da população não são respeitados cotidianamente, é, no mínimo, hipocrisia achar que a explosão da violência urbana está dissociada das questões sociais. Tal argumento é falacioso, embora saibamos que esse fenômeno também está relacionado com outros aspectos, como o fato de que atualmente vivemos uma sociedade de cultura violenta, que resolve seus conflitos não pelo diálogo, pela tolerância às diferenças, pelo respeito e pela ética, mas, sobretudo, pela violência, pelo confronto, pela lógica do levar vantagem em tudo. Não existe no Brasil e no mundo uma valorização da cultura da paz, o que precisa, também, ser urgentemente mudado.

Na verdade, o problema da violência no Brasil está ligado a diversos fatores, na avaliação do especialista Mário Volpi, do Unicef: alta concentração de renda, falta de oportunidades de estudo e trabalho para os jovens; ausência de uma política séria de segurança pública; descontrole do Estado sobre o crime organizado; inexistência de uma política de proteção e retirada dos adolescentes do tráfico de drogas e banalização da vida.

Nesse panorama, não podemos deixar de levar em conta as causas sociais, que têm, sim, impacto direto no crescimento da violência. Para grande parte das crianças brasileiras, a negação de direitos começa quando elas ainda estão no ventre de suas mães. No Brasil, segundo dados do relatório Situação da Infância Brasileira 2006, do Unicef, entre 1995 e 2002, o percentual de mulheres que fizeram pelo menos seis consultas durante o pré-natal, como recomenda a Organização Mundial de Saúde (OMS), sofreu pouquíssimas oscilações, ficando em torno do percentual de 49%. A mortalidade materna é outro problema grave no País, evidenciado há poucas semanas com o drama da adolescente grávida do Rio de Janeiro que, depois de percorrer quatro hospitais públicos, morreu em decorrência das complicações no parto. Ninguém se indignou. Não houve campanha da mídia, da sociedade, do Poder Público em prol de uma saúde pública de mais qualidade para as mulheres. Apenas um dia de destaque no noticiário nacional, e ninguém mais falou no assunto. Duas vidas perdidas: a da mãe e a do bebê. Outra brutal violência.

E a negação de direitos permanece para tantas crianças depois de seu nascimento. No Brasil, isso continua com o problema do registro civil. Segundo o IBGE, cerca de 750 mil crianças brasileiras completam um ano de idade sem terem sua certidão de nascimento – o primeiro passo para a cidadania. Sem o documento, elas não existem oficialmente para o Estado. Mesmo as que têm o registro civil seguem, muitas vezes, sem existir para o Poder Público. O Estado é omisso em várias áreas e em várias etapas da vida dessas crianças.

Muitas mães dificilmente conseguem ficar quatro meses afastadas do trabalho para cuidar e amamentar seus filhos. Voltam para o batente antes do tempo e, sem a oferta suficiente de creches, recorrem à vizinhança ou aos filhos mais velhos, ainda pequenos, para os cuidados com os menores. Aqui, uma dupla exclusão: os menores não vão às creches e os maiores têm seus estudos prejudicados porque precisam cumprir uma dupla jornada – em casa cuidando dos irmãos e indo à escola, quando vão, para tentar aprender alguma coisa. Vale lembrar que, no Brasil, apenas 13% das crianças entre zero e três anos têm acesso a essas instituições. Nas famílias com renda per capita inferior a 1/2 salário mínimo, essa proporção cai para 8,6%. Naquelas cuja renda ultrapassa três salários mínimos, o percentual chega a 35,8%, de acordo com o IBGE.

Anos depois, sem terem freqüentado creches, essas crianças não vão para a pré-escola. No Brasil, menos de 60% dos meninos e meninas entre quatro e seis anos têm acesso à pré-escola. A falta de investimento na Educação Infantil é um grave equívoco em vários aspectos. Estudos realizados em vários países do mundo já comprovaram que crianças que freqüentam creches e pré-escolas de qualidade são, no futuro, menos propensas à violência. Além disso, conseguem ter uma renda maior na comparação com aquelas que não tiveram acesso à Educação Infantil.

Mas no Brasil essa realidade está longe do cotidiano de milhares de crianças, que só começam a freqüentar a escola a partir dos sete anos de idade. Sem terem tido a chance de desenvolver seus potenciais em instituições de Educação Infantil, já chegam ao ensino fundamental em desvantagem em relação às crianças que tiveram acesso a creches e pré-escola de qualidade. No ensino fundamental, a saga continua. Com a escola pública em crise, as crianças estão terminando a quarta série sem sequer saberem ler e escrever direito e efetuar operações simples de matemática, como atestam os últimos levantamentos do Ministério da Educação. A defasagem idade-série e a evasão escolar são outros graves problemas. Segundo dados do IBGE de 2004, 14,4% dos estudantes de sete anos já entraram no ensino fundamental defasados e essa tendência vai aumentando conforme a idade, chegando a 65,7% aos 14 anos. Tudo, portanto, vai desaguar na adolescência: sem escolas atraentes, muitos meninos e meninas acabam abandonando os estudos. Sem acesso a cultura, esporte e lazer, saúde, moradia e educação de qualidade, muitas vezes vivenciando sérios problemas familiares, como o desemprego, a violência doméstica e o alcoolismo, essas crianças acabam nas ruas, na criminalidade, no mundo do trabalho infantil e da exploração sexual.

Por tudo isso, é fundamental também mudar a qualidade das nossas políticas sociais, investindo pesadamente em educação, saúde, moradia, saneamento básico, cultura, esporte e lazer. Investindo na adoção da escola em tempo integral; na melhoria do atendimento e da atenção às gestantes e seus bebês; na ampliação da licença-maternidade para seis meses visando estimular o aleitamento materno exclusivo nesse período e o fortalecimento do vínculo entre mãe e filho, medida comprovadamente eficaz para evitar, no futuro, comportamentos agressivos; na promoção de uma verdadeira cultura de paz com a participação da família, da escola e dos profissionais de saúde e assistência social; na oferta de cursos extracurriculares e profissionalizantes que sejam realmente capazes de preparar a juventude para a inserção no mundo globalizado de hoje; e na melhoria das condições de vida das famílias dessas crianças adotando estratégias de geração de emprego e renda e de atendimento psicossocial, quando for necessário.

5. O cenário internacional
Ao contrário do que apregoam os que defendem a redução da idade penal, o argumento da universalidade da punição legal aos menores de 18 anos é falso, diz o doutor em ciências políticas pela USP e pesquisador do Ilanud Túlio Kahn. Dados de uma pesquisa do Ilanud revelam que são minoria os países que definem o adulto como pessoa menor de 18 anos e que a maior parte destes é composta por Nações que não asseguram os direitos básicos de cidadania a seus jovens. Das 57 legislações analisadas, apenas 17% adotam idade menor do que 18 anos como critério para a definição legal de adulto: Bermudas, Chipre, Estados Unidos, Grécia, Haiti. Índia, Inglaterra, Marrocos, Nicarágua, São Vicente e Granadas. Alemanha e Espanha elevaram para 18 a idade penal e a primeira criou um sistema especial para julgar os jovens entre 18 e 21 anos. Com exceção dos Estados Unidos e da Inglaterra, todos os demais países são considerados pela ONU de baixo ou médio desenvolvimento.

Além disso, é importante frisar que o Brasil é signatário de diversos documentos internacionais que trabalham com a idade de 18 anos para definição de adulto. Os signatários da Convenção sobre os Direitos da Criança, que entende ser criança toda pessoa com menos de 18 anos, comprometem-se a não modificar suas leis internas em detrimento dos interesses daqueles que são protegidos pela norma internacional. A definição dessa faixa de 18 anos não aconteceu por acaso. É fruto de intensas discussões no âmbito internacional sobre o processo de desenvolvimento da criança e do adolescente. Eles são considerados pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, devendo, portanto, merecer do Estado, da família e da sociedade atenção especial.

O coordenador de projetos do Unicef, Mário Volpi, explicou, em audiência pública realizada pela Frente Parlamentar dos Direitos da Criança e do Adolescente no Senado Federal, no dia 10 de abril de 2007, que é impossível traçar um panorama da idade penal no mundo, como muitos segmentos vêm fazendo. Isso porque, de acordo com Volpi, os sistemas que regem os diversos países do planeta têm diferentes conceitos, sendo complicada a tarefa de estabelecer comparações. “Existe, porém, um princípio comum entre os países que ratificaram a Convenção dos Direitos da Criança, da ONU. Tais Nações acordaram entre si que as penas para as crianças não podem ser nunca iguais ou maiores do que as aplicadas aos adultos”, explicou o especialista.

Já Karyna Sposato, do Ilanud, na mesma audiência pública, esclareceu que não é verdade a afirmação comum na sociedade de que o adolescente que comete crime no nosso País não é responsabilizado. “Hoje, no Brasil, uma criança de 12 anos já responde pelos seus atos, dentro de um sistema jurisdicional próprio, diferente do aplicado aos adultos. E essa idade é bastante baixa em relação à fixada por outros países”, disse Karyna, informando que, na Alemanha, por exemplo, somente a partir dos 14 anos uma pessoa passa a ser responsabilizada pelos seus atos infracionais. “No mundo todo, existe um sistema especializado para quem tem menos de 18 anos”, afirmou a especialista. Na visão dela, quem defende a redução da idade penal está, na verdade, fazendo uma utilização política dos medos ocultos da nossa sociedade apresentando apenas soluções mágicas e meramente punitivas em vez de enfrentar com profundidade o problema da violência. “O que temos visto é uma redução do Estado social e um aumento do Estado penal”, diagnosticou Karyna.

É muito comum também o argumento de que um adolescente de 16 ou 14 anos sabe discernir o que é certo e o que é errado. A respeito disso, vale a pena refletir sobre o que diz o Promotor de Justiça Murillo José Digiácomo, do Paraná, em seu artigo “Redução da Idade Penal -- solução ou ilusão”: “A fixação da idade penal em 18 anos ou mais, critério adotado por 59% dos países do mundo, se deve não apenas a questões de ‘política criminal’, mas também, e especialmente, em razão da comprovação técnico/científica de que, na adolescência, onde há a transição entre a infância e idade adulta, a pessoa atravessa uma fase de profundas transformações psicossomáticas, ficando mais propensa à prática de atos anti-sociais (não apenas crimes, mas toda e qualquer forma de manifestar rebeldia e inconformismo com regras e valores socialmente impostos, em especial quando o jovem se envolve com algum grupo, perante o qual sente necessidade de se afirmar). A condição sui generis do adolescente demanda um tratamento diferenciado, com especial enfoque para sua orientação e efetiva recuperação, que somente pode ser obtida em instituição própria, onde exista uma proposta pedagógica séria e bem definida”.

O especialista também faz uma interessante análise sobre o argumento de que se o jovem pode votar com 16 anos, poderia muito bem responder criminalmente. “Aqueles que utilizam o direito de o adolescente a partir dos 16 anos votar como argumento para a redução da idade penal se esquecem que, em primeiro lugar, o voto até os 18 é facultativo, e em segundo que, apesar de poder votar (e as estatísticas revelam que menos de 25% dos adolescentes de 16/17 anos se inscrevem como eleitores, demonstrando franco despreparo para o exercício do voto), o adolescente não pode ser votado, não podendo exercer cargos públicos de qualquer natureza (que em muitas vezes exigem idade superior a 21 ou mesmo 25 anos), obviamente porque o legislador entendeu não terem os jovens a maturidade suficiente para assumirem tais cargos”.

Considerações Finais
O quadro que temos hoje no Brasil indica claramente que os direitos fundamentais da maioria da população não são respeitados. Portanto, a questão dos adolescentes infratores precisa ser analisada e enfrentada sob duas óticas: a ótica da culpa do jovem e da necessidade de puni-lo com rigor, e a ótica da responsabilidade de toda a sociedade. Ao simplificarmos esse debate, querendo apenas jogar os adolescentes em cadeias superlotadas, estamos varrendo, mais uma vez, a sujeira para debaixo do tapete. Estamos falhando como sociedade na medida em que reforçamos a lógica da exclusão social, a lógica do Brasil dividido: de um lado, as crianças que têm acesso a tudo e, de outro, os filhos da pobreza, condenados a um cotidiano marcado pela privação e pela falta de oportunidades – caminho que pode, sim, conduzir à incursão no mundo da barbárie. Se queremos realmente reverter essa lógica, mudar essa história, temos que investir, desde cedo, em todos os meninos e meninas deste País. Segundo a senadora Patrícia Saboya, é urgente, sim, a tarefa de lançarmos, no Brasil, um pacote de medidas contundentes para “salvar as nossas crianças, e não para prendê-las cada vez mais cedo”.